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Special Section

The Benefits of an Addiction: Alberto da Costa e Silva and Africa

The Immortal's Oeuvre is Fundamental for Studying African History

Abstract

This paper presents the Africanist face of Alberto da Costa e Silva, poet, historian, essayist, diplomat, member of the Brazilian Academy of Letters, and winner, among others, of the Camões Prize in 2014. Following an early passion that only grew throughout life, he built a solid knowledge about the historical production concerning the African continent, enriched by the experience of the four years he was the ambassador of Brazil in Nigeria and Benin. His work is fundamental for developing the studies and teaching of African history in Brazil.

Keywords

African studies; Alberto da Costa e Silva.
Source: Wikimedia.

Alberto da Costa e Silva é poeta, diplomata, memorialista, ensaísta, historiador, acadêmico, para citar algumas das atividades que desenvolveu. Pertence àquela categoria de diplomatas de carreira que também foram intelectuais ou criadores de grande projeção como Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Vinícius de Moraes, Sérgio Paulo Rouanet. Para citar apenas uma das muitas honrarias que já recebeu, foi laureado em 2014 com o prêmio Camões, atribuído pelos governos de Portugal e do Brasil. Seu pai era poeta, tinha um tio poeta, assim como alguns primos, e é como poeta que gosta de ser apresentado. A figura que guarda de seu pai em suas memórias mais antigas, que nos são apresentadas em Espelho do Príncipe, dos mais belos livros que já li, é de um homem apático, deprimido, mas um poeta cujo valor era reconhecido pelos seus pares. Entre os revezes que o pai havia vivido, tinha lugar de destaque a recusa do Instituto Rio Branco em recebê-lo, razão que motivou o filho a ingressar no instituto que havia fechado as portas para seu pai. 

O embaixador Alberto da Costa e Silva (título que sempre utilizei ao me dirigir a ele) nasceu em 1931, formou-se no Instituto Rio Branco em 1957, foi casado com Vera Queiroz da Costa e Silva, publicou vários livros, de história da África e da relação do Brasil com a África, de memórias, de ensaios, poemas, antologias, coletâneas de documentos, livros infanto-juvenis. Ainda pequeno ganhou da avó uma coleção chamada Biblioteca Internacional de Obras Célebres, com a qual começou a desenvolver seu amor pela leitura e a acumular informações que fizeram com que se destacasse dos colegas. Foi sempre um leitor voraz. E é um escritor de mão cheia. Além da enorme beleza do seu texto, seja qual for o gênero praticado, consegue fazer com que sua experiência pessoal alcance o leitor como se fosse dele próprio também. Ao transcender o individual e chegar ao universal faz o que tornam os livros clássicos.

Como conta sempre, aos 16 anos o menino Alberto descobriu a África com Os Africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, e Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Cabe indicarmos a originalidade do seu interesse pela África no contexto da década de 1940 no Brasil, que desde o século anterior havia se afastado física e simbolicamente daquele continente. O afastamento físico havia se dado desde o fim do comércio de gente e de algumas mercadorias que levavam comerciantes e marinheiros a viajar constantemente de lá para cá e de cá para lá, pelo que Alberto da Costa e Silva chamou de "um rio chamado Atlântico". A interrupção dos intercâmbios materiais foi acompanhada de um afastamento cultural, aprofundado pela chamada ideologia do branqueamento, que, além de dominar as ideias, passou a orientar a política do Estado. A imigração europeia recebeu então significativos incentivos, com a intenção explícita de elevar o nível da população por meio da diluição dos elementos de matrizes africanas, de forma coerente com uma percepção evolucionista da história, conforme a qual as sociedades e os povos africanos estariam em um estágio menos desenvolvido da humanidade, do qual a nação brasileira buscava se afastar. 

Diante da impossibilidade de negar a presença negra no Brasil, desenvolveu-se a ideia de uma mestiçagem benigna, que elevaria o negro ao patamar do branco e, ao longo do tempo, eliminaria os traços da sua presença. Por outro lado, buscou-se um afastamento simbólico do continente africano, cujas manifestações culturais eram vistas como atrasadas, devendo ser substituídas pelas formas de pensar e agir europeias. Na primeira metade do século XX, esse projeto chegou ao apogeu, com a afirmação de que vivíamos em uma democracia racial, na qual não fazia sentido evocar conexões africanas. Essa postura foi reforçada pelo contexto africano, com o continente sufocado pela dominação colonial europeia, que dizia estar levando a civilização para povos atrasados e de fato extraía riqueza sem que houvesse retorno algum. Portanto, vivendo em um país que talvez não percebesse o racismo no qual estava mergulhado e que evitava olhar para o continente africano, era coisa bastante rara e excepcional o interesse do jovem Alberto pelos assuntos africanos, que encontrava sintonia em apenas alguns poucos intelectuais brasileiros, como Artur Ramos e Edison Carneiro. 

…vivendo em um país que talvez não percebesse o racismo no qual estava mergulhado e que evitava olhar para o continente africano, era coisa bastante rara e excepcional o interesse do jovem Alberto pelos assuntos africanos…

Esse quadro mudou com a influência das ideias ligadas ao movimento da Negritude, que nasceu no Caribe e se espalhou por todo espaço abrangido pela diáspora africana, e principalmente com as independências dos países africanos na década de 1960, vividas por Alberto da Costa e Silva desde os primeiros momentos, pois quando aconteceram ele já fazia parte do corpo diplomático do Brasil. Sua primeira viagem à África ocorreu no início de sua carreira, quando integrou a comitiva do ministro das Relações Exteriores Negrão de Lima, representante do Brasil nas cerimônias de independência da Nigéria, em 1960. Desde então seu interesse pelo continente, conhecido pelos que com ele conviviam, fez com que fosse designado para missões na África, tendo sido embaixador do Brasil na Nigéria e no Benim de 1979 a 1983. 

No prefácio de seu livro A enxada e a lança, logo na primeira página ele revela que sua intenção com o livro era de "entregar ao leitor um manual – simples, claro, direto, embora emotivamente interessado – que lhe servisse como introdução ao conhecimento da África" (Silva 1992, 1). A seguir diz que o livro contém basicamente o que aprendeu com os outros, com apenas "se tanto, uma dezena de ideias minhas". Com esse livro deu início à obra que presta um serviço inestimável ao estudo de história da África no Brasil, pois quase nada tínhamos em língua portuguesa sobre o tema, e certamente nada equivalente ao que ele fez. Dez anos depois dessa publicação, nos brindou com outro livro, intitulado A manilha e o libambo, de 2002, e que em 2003 ganhou o prêmio Jabuti e o prêmio Sergio Buarque de Holanda, atribuído pela Biblioteca Nacional.

Se esses dois livros são indispensáveis para quem quer conhecer algo da história do continente africano, seu Francisco Félix de Sousa, mercador de escravos, de 2004, além de desvendar em detalhes o mecanismo do comércio de gente na Costa da Mina, em especial no porto de Uidá, mostra a importância dos brasileiros naquele comércio e como as duas margens do Atlântico estiveram intimamente conectadas por séculos.

Alberto da Costa e Silva percebeu muito cedo a importância de conhecermos as sociedades de origem dos escravizados trazidos para o Brasil para melhor entender o país, mais alertado por Nina Rodrigues, a despeito do seu sincero racismo, do que por Gilberto Freyre, que chamou sua atenção para o valor positivo da mestiçagem. Mas, como ele mesmo diz em título de uma coletânea de artigos seus – O vício da África e outros vícios –, uma vez que tomamos contato com a África, esta se torna um vício, e foi isto que aconteceu com ele, tornado dependente de aprofundar sempre seu conhecimento sobre o enorme, variado e complexo continente, do qual trata apenas de sua parte negra, ou subsaariana. Com um olhar construído a partir da relação entre as duas regiões ligadas pelo Atlântico e atento ao pesquisador Nina Rodrigues, que apesar de seu pensamento racista e evolucionista teve curiosidade de ouvir e achou importante registrar o que os africanos com quem teve contato diziam no final do século XIX, foi que percebeu a relação entre a rebelião dos malês na Salvador de 1835 e as jihads empreendidas no início do século XIX em regiões hoje pertencentes ao norte da Nigéria. Essa interpretação resultou em debates travados com João José Reis, o maior estudioso dessa rebelião, e com Paul Lovejoy, ambos estudiosos da escravidão, o que os fazem ressaltar os aspectos relacionados às relações escravistas e contestar Alberto da Costa e Silva quando este coloca em primeiro plano os fatores religiosos da rebelião, pertinentes aos contextos africanos da época. Remeto a essa discussão para ressaltar como o interesse desse historiador diletante pela África nasceu da percepção de que era necessário entender os africanos para melhor entender o Brasil, o que hoje é fartamente aceito, mas que não era quando ele começou a se debruçar sobre o continente africano, especialmente no campo da história. Expressão disso é a valorização tardia do trabalho de Pierre Verger Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benim e a Baía de Todos-os-Santos, com o qual o autor obteve o título de doutor pela Universidade Sorbonne, em 1966, e que apenas em 1985 foi publicado em português.

Alberto da Costa e Silva acumulou um conhecimento imenso acerca do continente africano, alimentado pela leitura de tudo que conseguia obter, comprando o que encontrava e solicitando aos colegas diplomatas que comprassem para ele os lançamentos acerca dos quais tomava conhecimento pelas revistas especializadas. Não podemos esquecer que, no século passado, a pesquisa e o acesso a livros recém-lançados eram bem mais trabalhosos. Mas a sua profissão facilitou-lhe a obtenção de publicações que alimentaram sua erudição excepcional. Como ele mesmo diz, seus livros são basicamente resultados de leituras e opções de abordagem, pois escolheu temas e perspectivas a partir de sua sensibilidade própria e do conhecimento acumulado. Claro que em todos há ideias suas, mas não é a defesa delas sua principal motivação e sim partilhar com o leitor seu conhecimento. Este está presente não apenas na narrativa como nas preciosas notas, nas quais cada fonte é indicada, ajudando imensamente o pesquisador que busca se aprofundar sobre um determinado tema, ou apenas saber quem escreveu sobre ele. E nisso a face do mestre se revela, com toda sua generosidade e amor pelo conhecimento.

Em seus livros e artigos sobre a história africana, vale destacar o sabor especial do seu texto, a beleza das imagens, a sonoridade das frases, o domínio de um vocabulário que pode parecer fora de moda, mas em suas mãos ganha novo sentido, suas opções narrativas, que expressam, por um lado, o poeta e escritor para quem as palavras são gemas a serem lapidadas, notas a serem combinadas de forma a criar uma melodia, e, por outro lado, o olhar com que a história é narrada, que transmite as informações. Se para o poeta o homem é o centro dos interesses, para o historiador, este homem é o africano, até então muito pouco conhecido entre nós. Transportando o leitor para a cena descrita, alcança momentos especiais quando isso é realizado da perspectiva que presume ser a do africano, mesmo deixando claro que se trata em boa parte de um exercício de imaginação. Ainda que fundamentado em fontes, os estudiosos de sociedades africanas não letradas do passado, que poucos registros deixaram de si próprias (concentrados em resquícios materiais e narrativas orais), precisam recorrer à imaginação para suprir lacunas na reconstituição de processos históricos e formações sociais. Segundo Costa e Silva, "por cima do ombro de todo bom historiador há um ficcionista a lhe falar ao ouvido, e vice-versa" (Silva 2022, 14).

[O texto de Costa e Silva] é resultado não só de uma enorme erudição e domínio da bibliografia sobre a história da África Subsaariana, mas da imersão de sua sensibilidade nas culturas do continente que se tornou seu vício, para nosso benefício.

Com esse sentimento, em alguns momentos seu texto sobre a história dos africanos nos coloca no lugar deles, mesmo sendo a informação retirada das narrativas feitas pelos estrangeiros, como ao falar como os nativos da região aurífera da costa ocidental teriam visto os portugueses pela primeira vez: "Os homens de cútis enferma que desceram dos escaleres vinham apertados em panos, enrolados do pescoço aos pés, talvez porque não pudessem mostrar nem olear o corpo" (Silva 2002, 197). Seu texto é resultado não só de uma enorme erudição e domínio da bibliografia sobre a história da África Subsaariana, mas da imersão de sua sensibilidade nas culturas do continente que se tornou seu vício, para nosso benefício. Certamente suas muitas experiências no continente africano permitiram que percebesse as especificidades das sociedades e culturas sobre as quais escreveu. Mais uma vez em suas próprias palavras, pois é difícil delas escapar:

durante a permanência na Nigéria, de que guardo gratidão enternecida, pude confrontar, sem pressa ou afoiteza, a palavra escrita com o dia vivido. Cresceu em mim o entendimento do que lera e mudou-se a inteligência do que ainda ia ler. Tornaram-se menos imprecisos os significados de certas palavras, de certos gestos, de certas festas, de certos costumes e de determinadas instituições, e mais perceptíveis os seus ecos no Brasil e o ir e vir das ressonâncias por sobre as águas do Atlântico (1992, 2).

Meu primeiro contato com o embaixador Alberto da Costa e Silva foi no ano 2000, quando, a conselho de minha irmã Laura de Mello e Souza, então professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, fui pedir a ele recomendações acerca do que ler para me preparar para o concurso de seleção de docente de história da África, no mesmo departamento em que ela trabalhava. Desde então muita coisa mudou nessa área de estudos. Uma lei foi criada tornando obrigatório o seu ensino nas escolas, livros didáticos e paradidáticos foram escritos, algumas obras importantes foram traduzidas e, com a presença da matéria também nos currículos universitários, pesquisas passaram a ser desenvolvidas nos programas de pós-graduação. Mesmo nesse contexto de rápida expansão da área de estudos africanos, os livros de Alberto da Costa e Silva são fundamentais para os curiosos e os estudiosos do continente africano, visto a partir de si próprio e de suas conexões com o Brasil. 

Em entrevista que me concedeu em 2003, quando era presidente da Academia Brasileira de Letras, se disse surpreso com a recepção de A manilha e o libambo, que em seis meses já havia vendido quase todos os 3.000 exemplares de sua primeira edição. Não sei qual o número da sua edição em capa dura e dois volumes lançada em 2022, mas certamente já foram feitas várias edições antes dessa, de luxo, assim como de A enxada e a lança: os dois manuais sobre história da África que fariam parte de uma trilogia conforme os planos iniciais do autor, devendo ser o terceiro volume sobre os séculos XVIII e XIX. De um estudioso solitário, talvez visto como interessado em temas exóticos, Alberto da Costa e Silva tornou-se um africanista (ou africanólogo conforme sua terminologia) internacionalmente reconhecido, respeitado pelos mais importantes estudiosos contemporâneos e patrono dos estudiosos e estudiosas de África no Brasil.

Já faz algum tempo que voltamos a nos aproximar do continente situado na outra margem do Atlântico, não só devido à política externa brasileira e aos interesses comerciais de empresas de grande porte, mas também devido aos novos enfoques que destacam a necessidade de conhecer as sociedades e os processos históricos africanos para melhor entender certos aspectos do Brasil. Além disso, também surgiu uma nova postura nos movimentos que buscam igualdade de condições para as parcelas negras de nossa população reivindicando o direito à diferença, dada pelas suas heranças culturais. O ensino de história da África é hoje considerado um instrumento importante na construção da autoestima daqueles que eram considerados inferiores devido a preconceitos fundados em bases raciais. Alberto da Costa e Silva sabe disso desde a adolescência e deve estar feliz em ver que muitos agora também percebem isso, assim como ver que sua obra é especialmente importante nesse percurso. 

O ensino de história da África é hoje considerado um instrumento importante na construção da autoestima daqueles que eram considerados inferiores devido a preconceitos fundados em bases raciais. Alberto da Costa e Silva sabe disso desde a adolescência e deve estar feliz em ver que muitos agora também percebem isso, assim como ver que sua obra é especialmente importante nesse percurso. 

Este é o depoimento de uma historiadora do continente africano e da cultura afro-brasileira que só tem uma visão parcial da obra desse polígrafo, que, ao nos mostrar a África, nos leva a melhor entender o Brasil.

Notas

[1]Este texto teve por base uma palestra proferida no dia 30 de agosto de 2016, nos Colóquios Mindlin, promovidos pela Biblioteca Brasiliana Mindlin da Universidade de São Paulo.

Referências Bibliográficas

Silva, Alberto da Costa e. 1989. O vício da África e outros vícios. Lisboa: Edições João Sá da Costa.

Silva, Alberto da Costa e. 1992. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Silva, Alberto da Costa e. 1994. O espelho do príncipe. Ficções da Memória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Silva, Alberto da Costa e. 2002. A manilha e o libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Biblioteca Nacional.

Silva, Alberto da Costa e. 2003. Um rio chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, UFRJ.

Silva, Alberto da Costa e. 2004. Francisco Félix de Sousa, mercador de escravos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, EdUERJ.

Silva, Alberto da Costa e. 2021. A África e os africanos na história e nos mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Souza, Marina de Mello e. 2003.  Entrevista com Alberto da Costa e Silva, Historiador Eletrônico.

Recebido: 19 de maio de 2023

Aceito para publicação: 20 de junho de 2023

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