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From the Editors

The Technological Revolution Knocks On Our Door. Are We Ready?

Technology and International Politics in the Digital Age
Mariana Jaguaribe Lara Resende. Illustration: Bicho Coletivo.

Desde os primeiros hominídeos da pré-história, a tecnologia tem sido central para a evolução da espécie humana. O sucesso do Homo sapiens no Paleolítico esteve fortemente ligado ao poder de seu intelecto para utilizar madeira, pedra, ossos, dentes e chifres de animais para criar as primeiras ferramentas destinadas a cortar, escavar, raspar, caçar e garantir o sustento para sua sobrevivência. Ao longo do tempo, novas invenções e avanços tecnológicos sedimentaram e ampliaram a capacidade do ser humano de modificar o meio natural (Headrick 2009).

As revoluções industriais do período recente propiciaram a mecanização da agricultura e a automação de processos produtivos, substituindo a força dos músculos para aumentar a produtividade. No século XX, o fordismo estabeleceu o padrão para a indústria moderna em fábricas concebidas para a produção em série de bens para consumo em massa. Hoje, com a economia do conhecimento baseada em dados liderando a transformação digital, as máquinas começam a assumir tarefas cognitivas que antes eram exclusivas do cérebro humano. A inteligência artificial (IA), como uma tecnologia habilitadora de uso geral com inúmeras aplicações e casos de uso, está descortinando horizontes outrora difíceis de imaginar (Suleyman 2023; Tinnirello 2022).

A política internacional está imersa no ambiente socioeconômico do qual é parte e não deixa de ser influenciada pelas mudanças postas em marcha pela tecnologia. Em particular, as relações políticas no plano global ocorrem sob o primado da infraestrutura digital que conecta o mundo contemporâneo, (...) uma infinidade de recursos tecnológicos que caracterizam a tecnosfera criada pela civilização humana.

A política internacional está imersa no ambiente socioeconômico do qual é parte e não deixa de ser influenciada pelas mudanças postas em marcha pela tecnologia. Em particular, as relações políticas no plano global ocorrem sob o primado da infraestrutura digital que conecta o mundo contemporâneo, incluindo computadores, internet, redes de telecomunicações, centros de dados, sistemas de software, semicondutores, cabos submarinos, satélites, materiais estratégicos e uma infinidade de recursos tecnológicos que caracterizam a tecnosfera criada pela civilização humana.

Este número da CEBRI-Revista é inteiramente dedicado à Seção Especial, que reúne um seleto grupo de contribuições para colocar em perspectiva essas questões. Já de início, o primeiro artigo, escrito pelo professor e diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Antonio Jorge Ramalho, introduz considerações prementes para a discussão sobre a política internacional na era digital. Destaca inter alia três aspectos relevantes na relação entre tecnologia e política: os impactos das evoluções tecnológicas na relação entre soberanos e súditos; os efeitos das novas tecnologias sobre a redistribuição de poder tanto entre os próprios soberanos quanto entre eles e os grupos de interesse no interior dos Estados; e as implicações dessas dinâmicas para a governança global e as democracias contemporâneas. No cerne de seu argumento está a ideia de que as inovações tecnológicas que estamos presenciando, ao alterarem a forma como organizamos as sociedades e agimos no tempo e no espaço, favorecem a transferência de poder dos soberanos para os indivíduos, gerando instabilidades que podem, em última análise, levar a ordem mundial a uma crise sem precedentes. As teorias tradicionais da disciplina de Relações Internacionais estão tendo dificuldades em incorporar essas mudanças às suas análises do cenário internacional.

O cientista político mexicano José Ramón Lopez-Portillo Romano apresenta uma perspectiva do poder da inovação diante do novo paradigma tecnoeconômico em desenvolvimento, que confere supremacia geopolítica, domínio de mercado e vultosos lucros àquelas nações e empresas que concentram ecossistemas robustos de inovação, conhecimento científico, avanços tecnológicos e acesso a farto financiamento. Em seu artigo, aponta que tal predomínio frequentemente aprofunda as desigualdades, uma vez que a maioria dos países do Sul Global e das comunidades vulneráveis ​​em todo o mundo enfrentam limitações de recursos, infraestrutura e competências em ciência, tecnologia e inovação. Embora não haja soluções fáceis para esse problema, o Grupo de 10 Especialistas do Mecanismo de Facilitação Tecnológica das Nações Unidas, do qual o autor é membro, é parte dos esforços multilaterais para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e, nesse contexto, propôs a criação de uma Rede Global de Bancos de Ideias e Fundos de Inovação, que o leitor poderá conhecer melhor e situar no cenário mais amplo dos desafios comuns a todos os países em desenvolvimento.

A diplomata e mestra em Assuntos Internacionais Tatiana Carvalho Teixeira traz uma abordagem instigante que analisa, sob a ótica de gênero, o debate sobre o papel do Direito Internacional e do Direito Internacional Humanitário na regulação da guerra cibernética e da utilização crescente das tecnologias de informação e comunicação para fins maliciosos. Como bem mostra a autora, a literatura acadêmica tradicional sobre guerras e conflitos, especialmente no ciberespaço, em geral ignora os aspectos de gênero, sendo por isso mesmo enviesada e deficiente no tratamento do tema. Adotando um quadro teórico que aplica uma leitura feminista a essas questões, seu texto lança um novo olhar à interação entre tecnologia, conflito e direito internacional humanitário, analisando estudos de caso ligados às operações cibernéticas. Relembrando a frase célebre de Cynthia Enloe (2000), citada na conclusão do artigo, “o mundo é algo que foi feito; portanto, pode ser refeito”. Tal é o desafio de repensar o mundo em que vivemos, não apenas para reinterpretá-lo de outra forma, corrigindo distorções ou atualizando conceitos, mas para também de alguma maneira mudar uma realidade construída por visões de mundo arraigadas ao longo do tempo.

A professora da Universidade Nacional de Córdoba e pesquisadora do CONICET Maria Pilar Llorens discute a governança da inteligência artificial na América Latina, ainda em formação, realçando a contribuição que os quadros normativos de direitos humanos podem dar a seu desenvolvimento. Defende que o respeito, a promoção e a proteção dos direitos humanos devem estar no centro do debate sobre o uso ético e responsável da IA, por meio de uma abordagem centrada no ser humano. Para tanto, evoca a utilidade das distintas obrigações que emanam do sistema interamericano de direitos humanos, aos quais os Estados latino-americanos se encontram historicamente vinculados, como é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Seu artigo discute, esclarece e mostra como tal arcabouço jurídico, ao mesmo tempo robusto e adaptável, pode auxiliar na concepção, avanço e implantação de sistemas de governança de IA na região.

Thomas Malta-Kira, pesquisador na Universidade de Cambridge e consultor de tecnologia, discute as recentes tendências globais na implementação de controles de investimento em áreas que afetam a segurança nacional. Avalia a necessidade de uma maior compreensão das perdas e ganhos que esse processo envolve, especialmente em termos do impacto de tais intervenções na operação de sistemas dinâmicos e complexos que produzem inovação. Ao analisar diversos fatores em jogo à luz das experiências dos Estados Unidos e do Reino Unido na elaboração de políticas de controle de investimento, faz igualmente uma reflexão sobre o caso brasileiro, pondo em relevo algumas diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Considerando o contexto específico de cada sistema nacional de inovação, conclui que certas abordagens podem não ser estrategicamente aplicáveis no contexto de nações recém-industrializadas.

O campo militar também está sendo impactado pela revolução tecnológica em curso. Ao constatar a ausência de regulamentação específica sobre a utilização de sistemas de armas autônomas em conflitos armados, Lutiana Valadares Fernandes Barbosa, doutora em Direito Internacional e pesquisadora da UNESCO sobre a implementação da recomendação sobre ética da IA no Brasil, examina as minúcias por trás da nova Diretiva 3000.09 do Departamento de Defesa norte-americano, que pretende orientar as ações dos Estados Unidos nesse terreno. Note-se que, em Genebra, o Grupo de Especialistas Governamentais, no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre Certas Armas Convencionais, vem discutindo há vários anos possíveis recomendações para regular as armas autônomas, mas o progresso tem sido lento. É sempre bom lembrar que cabe ao Brasil a presidência desse Grupo de Especialistas no período 2022-2023. Mas, por se tratar de tema sensível e controverso, não são poucos os obstáculos a um consenso que possa resultar em avanço significativo no curto prazo. Daí a importância de aprofundar esse debate sobre os usos militares da inteligência artificial (Garcia 2021) e buscar compreender o alcance que a Diretiva norte-americana pode vir a ter, o que a autora faz de forma crítica e substantiva.

Gaudys L. Sanclemente, doutora em Estudos Internacionais, explora as intersecções entre a inteligência artificial, as ferramentas digitais e a segurança nacional, discutindo desafios técnicos, estudos de caso, cenários, medidas regulatórias e suas potenciais implicações. Uma preocupação crucial é saber lidar com o viés dos algoritmos, que podem afetar negativamente o emprego de sistemas de IA para a segurança nacional. Tais riscos precisam ser eliminados ou mitigados para garantir um emprego ético da tecnologia, com a devida atenção à sua efetividade como instrumento útil, seguro e confiável. Como assinalado no artigo, faz-se mister encontrar um equilíbrio entre as vantagens e os riscos da IA, garantindo ao mesmo tempo a sua aplicação responsável na segurança nacional.

Duas resenhas constam desta edição. A primeira foi elaborada pelo doutor em Filosofia do Direito André Gualtieri sobre o livro escrito por Paul Scharre Four Battlegrounds: Power in the Age of Artificial Intelligence. A obra está inteiramente estruturada em torno da luta pela supremacia global entre Estados Unidos e China no domínio da tecnologia, com destaque para a IA. Esses “quatro campos de batalha” são os dados, o poder computacional, os talentos e as capacidades institucionais de cada país. O livro cobre esses aspectos a partir de uma visão de confronto inevitável entre democracias ocidentais e governos autoritários. Ainda que essa seja uma leitura recorrente e muito comum no Hemisfério Norte, pode-se indagar em que medida as prioridades sociais, econômicas ou tecnológicas dos países em desenvolvimento são atendidas nesse contexto. Os leitores poderão tirar suas próprias conclusões sobre se, da perspectiva do Sul Global, o agravamento das rivalidades entre as grandes potências trará um impacto positivo ou negativo em relação às necessidades de desenvolvimento da maioria dos países.

A segunda resenha, elaborada pelo professor de Relações Internacionais do Insper e Ibmec e consultor da UNESCO para IA Gustavo Macedo, aborda o livro de Bleddyn E. Bowen Original Sin: Power, Technology and War in Outer Space. O desenvolvimento da tecnologia espacial, segundo o autor, foi moldado por considerações militares e preocupações com a segurança. A Guerra Fria teria levado à militarização do espaço, e a obra traça um amplo panorama da evolução tecnológica e dos riscos associados à utilização do espaço de forma não sustentável, como no caso dos satélites de órbita baixa que podem ser atingidos por detritos espaciais, o que ocorre em número cada vez maior. Há hoje uma nova configuração de forças no espaço com a entrada de outros atores, como China e Índia, além de empresas privadas como a SpaceX de Elon Musk. Eis um tema que irá ganhar importância crescente no futuro próximo, reforçando a necessidade de construir mais confiança e de buscar formas pacíficas de governança para prevenir conflitos nesse ambiente.

A edição é enriquecida ao final com três entrevistas de altíssima qualidade versando sobre temas caros à era digital. Katharina Höne é doutora em Política Internacional e ex-diretora de pesquisa da organização DiploFoundation, especializada na capacitação em governança da internet. Com larga experiência em diplomacia digital e treinamento de funcionários internacionais nessa área, compartilha sua visão sobre o que esperar da inteligência artificial, incluindo seu uso como ferramenta de trabalho para aqueles que estão iniciando sua jornada profissional. O economista Paulo Gala, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, nos brinda com uma informativa entrevista que situa a tecnologia como elemento fundamental das disputas econômicas, tanto historicamente quanto na atualidade. Fornece, ainda, algumas pistas para países em desenvolvimento que procuram encontrar nichos de mercado e desenvolver capacidades tecnológicas próprias, ainda que não sejam as mais sofisticadas em comparação com a pesquisa de ponta em outros lugares. Finalmente, Christina Steinbrecher-Pfandt discorre sobre o papel da Rede de Diplomacia da Tecnologia, criada este ano em São Francisco e da qual ela é CEO, assim como alguns desafios para tornar a discussão sobre o assunto mais inclusiva, com maior participação de governos, empresas privadas e sociedade civil, a despeito da conjuntura de crescente competição internacional e desconfiança entre os países líderes em tecnologia (Diesen 2021; Helberg 2021).

[H]á muito a refletir sobre a influência da tecnologia nos rumos que as relações internacionais poderão tomar no século XXI. A política internacional está vinculada ao seu caráter técnico-social. Além disso, a tecnologia é construída socialmente, não sendo totalmente neutra ou imparcial. 

O conjunto das contribuições neste número da CEBRI-Revista demonstra que há muito a refletir sobre a influência da tecnologia nos rumos que as relações internacionais poderão tomar no século XXI. A política internacional está vinculada ao seu caráter técnico-social. Além disso, a tecnologia é construída socialmente, não sendo totalmente neutra ou imparcial (McCarthy 2018). A revolução tecnológica deverá aprofundar-se nos anos e décadas a seguir, e os formuladores de política, empresários, professores, pesquisadores e estudantes serão cada vez mais chamados a contribuir para esse debate.

Por fim, anunciamos que a Seção Especial da próxima edição será dedicada ao G20. Considerando que o Brasil terá a presidência do G20 em 2024 e o CEBRI será um dos organizadores do T20 ao lado do IPEA e da FUNAG, discutir este fórum multilateral é de extrema importância. Apropriadamente, a edição apresentará ao seu público a entrevista com Amina J. Mohammed, secretária-geral adjunta das Nações Unidas, anunciada no editorial da sexta edição.

São Francisco, 21 de setembro de 2023

Referências bibliográficas

Diesen, Glenn. 2021. Great Power Politics in the Fourth Industrial Revolution. London: Bloomsbury.

Enloe, Cynthia. 2000. Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. London: University of California Press.

Garcia, Eugênio V. 2021. “The Peaceful Uses of AI: An Emerging Principle of International Law”. The Good AI Online Platform. https://thegoodai.co/the-peaceful-uses-of-ai-an-emerging-principle-of-international-law.

Headrick, Daniel R. 2009. Technology: A World History. Oxford: Oxford University Press.

Helberg, Jacob. 2021. The Wires of War: Technology and the Global Struggle for Power. New York: Avid Reader Press.

McCarthy, Daniel R. 2018. “Introduction: Technology and World Politics”. In Technology and World Politics: An Introduction, organizado por Daniel R. McCarthy, 1-17. New York: Routledge

Suleyman, Mustafa. 2023. The Coming Wave: Technology, Power, and the 21st Century’s Greatest Dilemma. New York: Crown.

Tinnirello, Maurizio (ed.). 2022. The Global Politics of Artificial Intelligence. New York: Routledge.

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