A ruptura promovida pela política tarifária dos EUA compromete a ordem multilateral de comércio. A retração norte-americana projeta cenários de multipolaridade e abre espaço para maior protagonismo da China e de potências médias. Inicia-se, assim, uma nova configuração da ordem econômica internacional, marcada por instabilidade e disputa hegemônica. O entrelaçamento dos temas de comércio e finanças fica claro. A governança global enfrenta incertezas, abrindo espaço para novas dinâmicas regionais e para uma possível reconfiguração das normas que regulam o comércio internacional.
Já eram aparentes, há algum tempo, os sinais de esgotamento da ordem multilateral construída no pós-guerra sob liderança dos EUA. As acusações mútuas e as insatisfações crescentes apontavam para o acirramento das crises políticas e econômicas, mas não ainda para uma possível ruptura do sistema multilateral. A chegada do segundo governo Trump, em 2025, representou uma implosão de ampla magnitude. Iniciada como um ataque tarifário contra a China e o resto do mundo – claramente no âmbito do referencial da geoeconomia, de uso do comércio como instrumento para obter vantagens no campo político –, seus efeitos já se espalham para a área financeira e podem atingir os fundamentos da macroeconomia mundial, acirrando o quadro de inflação, com o risco de provocar uma recessão mundial.
Não há espaço para dúvidas: o governo Trump está rompendo com as bases da ordem internacional para impor uma nova geopolítica. Ao buscar se aproximar da Rússia e criar tensões com os aliados europeus, os EUA colocam em questão os compromissos da OTAN, levantando a possibilidade de uma partição da Ucrânia. Os passos dados até agora apontam também para maior tensão entre Israel e Irã e uma nova configuração no Oriente Médio. Essa nova dinâmica suscita, por sua vez, questões essenciais: o conflito entre as grandes potências, EUA e China, se restringirá ao campo comercial, ou envolverá a partição do globo em esferas de influência e a absorção de Taiwan pela China? No Atlântico, os EUA exercerão seu poder sobre o Panamá e a Groenlândia? De que lado se posicionará a Rússia, hoje aliada da China? Como reagirão a União Europeia (UE), a Índia e os países de renda média? Qual o papel das organizações de governança global? Estamos caminhando para um mundo dividido em três zonas de influência (EUA, China e Rússia), ou para um mundo bipolar, com uma separação radical (decoupling) entre EUA e China? Caminha o mundo para um confronto armado?
Os EUA são a maior economia mundial, com um PIB de cerca de US$ 29 trilhões e 22% do fluxo total do comércio mundial (exportações + importações). Já a China apresenta um PIB estimado de US$ 19 trilhões e representa cerca de 25% do fluxo de comércio mundial. Uma guerra comercial entre essas duas potências econômicas impactará todos os demais parceiros internacionais e a governança global.
O objetivo deste texto é tentar analisar o momento atual, usando por referência a geoeconomia. Sintetiza os principais pontos do conflito comercial, avalia as implicações financeiras e econômicas e constrói uma ponte entre a geoeconomia e a geopolítica da nova era Trump. Por fim, elabora alguns cenários com os possíveis desdobramentos para o futuro próximo. A questão central é como e por quem será feita a governança do mundo.
A GEOECONOMIA SEGUNDO TRUMP
A era Trump se tornará, muito provavelmente, um caso clássico da geoeconomia, de como fazer uso das armas do comércio (trade weaponization) para se atingirem fins geopolíticos. Para Blackwill e Harris (2016), na sua obra de referência War by Other Means, os instrumentos de comércio passaram a ser empregados, nas últimas décadas, com objetivos de persuasão ou coerção para fins políticos. Instrumentos de comércio internacional como tarifas, restrições a exportações ou importações, subsídios, barreiras regulatórias, além de restrições à origem de investimentos ou sanções financeiras, são empregados com crescente frequência por países de maior peso econômico para objetivos políticos. O uso de tais instrumentos já demonstrou sua eficácia, mas suas consequências podem ser imprevisíveis. Conflitos comerciais podem se converter em crises econômicas e levar potencialmente a conflitos militares. A história tem muitos exemplos dessa progressão.
É relevante sintetizar os principais pontos da estratégia comercial do programa econômico do governo Trump, já claramente delineada no Presidential Memorandum “America First Trade Policy” divulgado em 20 de janeiro (Estados Unidos 2025a). Esse documento serve de base de orientação para as medidas do governo Trump e coloca em dúvida a tese de que o seu governo age pura e simplesmente ao sabor dos humores e do instinto do presidente – ainda que a implementação das medidas seja caótica.
A nova política comercial de Trump tem nas tarifas a sua principal arma. Os objetivos perseguidos são: (i) reduzir os persistentes déficits comerciais, considerados como um risco para a segurança nacional dos EUA e gerados (segundo a visão trumpiana) por práticas desleais dos parceiros internacionais; (ii) repatriar atividades industriais para os EUA; (iii) criar empregos para a classe operária dos EUA; (iv) modernizar a produção industrial; (v) gerar receitas que permitam a redução de impostos; e (vi) trazer à mesa de negociações os parceiros comerciais dos EUA. Os principais pontos são aqui alinhados.
A nova política comercial dos EUA
A política comercial é tratada como componente crítico para a segurança nacional norte-americana. A política é estabelecida para promover os investimentos e a produtividade, fortalecer as vantagens industriais e tecnológicas e beneficiar os trabalhadores. Suas prioridades são várias: investigação das causas do comércio injusto e desbalanceado, e os déficits persistentes e crescentes (US$ 1,2 trilhão em 2024); estabelecimento de um External Revenue Service para coletar tarifas e direitos relacionados com o comércio; revisão do Acordo USMCA com México e Canadá; revisão das práticas de taxas de câmbio entre parceiros e os EUA; revisão dos acordos de comércio; negociação de acordos bilaterais e setoriais para acesso a novos mercados; revisão dos regulamentos de antidumping e medidas compensatórias; medidas contra produtos de contrafação e contrabando e revisão da taxa mínima de US$ 800 para importações livres de impostos; investigação de taxas discriminatórias contra empresas americanas; e análise dos acordos de compras governamentais. Pretende ainda revisar totalmente as relações comerciais com a China, incluindo investimentos e propriedade intelectual; revisar a segurança da base industrial, incluindo práticas de importação de aço e alumínio; e revisar as medidas de controle de exportações relacionadas a bens estratégicos, software, serviços e tecnologia.
China como principal alvo da guerra comercial
O desenrolar dos acontecimentos recentes e das medidas de ação e reação entre EUA e seus parceiros demonstra de forma inequívoca que o alvo principal é a China. Desde sua acessão à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, a China tornou-se a maior potência do comércio internacional global, desbancando os EUA no seu papel de liderança comercial.
Com relação à China, o Memorandum estabelece uma revisão das relações bilaterais para determinar se as ações chinesas estão ou não em conformidade com os acordos negociados e, se necessário, recomendar ações apropriadas como tarifas; avaliar o relatório sob a Section 301 sobre propriedade intelectual; aplicar tarifas, se necessário, com relação às cadeias de suprimento e circunvenção por terceiros países; investigar medidas consideradas não razoáveis ou discriminatórias contra comércio dos EUA (Section 2411 US Code); reavaliar legislação sobre acordo baseado nas Permanent Normal Trade Relations with the People’s Republic of China e fazer recomendações; avaliar a situação de propriedade intelectual concedida a nacionais da China com relação a patentes, direito do autor e marcas; e fazer recomendações para assegurar tratamento recíproco.
Regras sobre tarifas
As bases das regras sobre tarifas foram estabelecidas no memorandum Reciprocal Trade and Tariffs de 2 de abril (Estados Unidos 2025b). Esse texto avalia que os EUA têm uma das economias mais abertas do mundo, com as menores tarifas médias ponderadas e menores barreiras ao comércio. Considera que os EUA foram tratados de forma injusta por países amigos e inimigos e que a falta de reciprocidade é uma das causas dos déficits significativos e persistentes relativos ao comércio de mercadorias, resultando em mercados fechados que reduzem exportações dos EUA.
O Fair and Reciprocal Plan de 2 de abril (Estados Unidos 2025c) inclui como barreiras ao comércio: tarifas; taxas discriminatórias sobre consumo (value-added taxes); subsídios, exigências regulatórias; medidas não tarifárias; políticas e práticas que causem desvios do câmbio; e limites ao acesso a mercados.
Para solucionar o problema do déficit, foi introduzida uma “Tarifa Recíproca”, calculada segundo uma fórmula estabelecida pelo Escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR). Essa fórmula foi apresentada como instrumento necessário para reequilibrar os déficits do comércio bilateral entre os EUA e cada parceiro, combinando tarifas e fatores não tarifários. Segundo o texto, como os cálculos dos efeitos nos déficits individuais das tarifas e regulações para a dezena de milhares produtos são complexos, senão impossíveis, seu efeito combinado pode ser dado por uma proxy que calcule qual seria o nível tarifário compatível, que levaria o déficit a zero. Ainda, justifica que, se o déficit é persistente por causa das tarifas e políticas não tarifárias, então a taxa tarifária compatível com a anulação desses efeitos seria recíproca e justa. A tarifa aplicada para cada país pode ser obtida dividindo-se o déficit comercial do país pelo total de importação desse país pelos EUA. O valor desse indicador na fórmula proposta é corrigido por duas elasticidades de preço selecionadas. O valor das elasticidades foi estabelecido em dois (2), dividindo à metade o valor da tarifa, “por gentileza do presidente”, segundo a porta-voz do governo. A fórmula apresentada pelo USTR foi objeto de intensa contestação, por seu simplismo e duvidosa base econômica.
Base legal
Com o objetivo de reconstruir a economia e restaurar a segurança econômica, o presidente dos EUA evocou sua autoridade por meio do International Emergency Economic Powers Act of 1977 (IEEPA), além da US Code Section 50 (1701); do National Emergency Act (50 E.S.C 1601); e do Trade Act de 1974, Section 604. Essa base legal já está sendo contestada internamente nos EUA.
O motivo alegado é o de emergência nacional, em consequência do amplo e persistente déficit, causado pela citada ausência de reciprocidade nas relações comerciais e outras políticas danosas, como manipulação cambial e taxas de valor adicionado como Value Added Tax (VATs), usadas por muitos parceiros.
Foi imposta uma tarifa de base de 10% sobre todos os países, além de tarifas recíprocas individualizadas, no caso dos países com os maiores déficits com os EUA. A aplicação é por tempo a ser determinado pelo presidente. Em casos de retaliação ou contramedidas, os valores podem ser aumentados. Podem também ser diminuídos, se os parceiros se alinharem com os EUA. Produtos não sujeitos às tarifas são: bens já sob medidas de sanções (USC 1702(b), como os da Rússia); aço e alumínio; autos já tarifados (Section 232), cobre; fármacos; semicondutores (com ampla definição de produtos); artigos de madeira; ouro; energia e minerais não disponíveis nos EUA. No caso dos USMCA, bens incluídos no acordo serão excluídos e os demais passarão a ter tarifas de 25%; e energia e potássio de 10%.
O documento justifica as medidas apontando que a tarifa média simples nos EUA é de 3,3%, em contraste com Brasil 11,2%, China 7,5%, União Europeia 5%, Índia 17%, Vietnã 9,4%, por exemplo. Ainda justifica que o déficit do comércio em 2024 foi de US$ 1,2 trilhão e que o valor da manufatura em 2023 foi de 17,4%, decrescendo de 28,4% em 2001.
Observe-se que a aplicação dessas tarifas é extremamente complexa, pelas diferenças entre os vários parceiros e pelas regras de origem. Os anúncios de aplicação das tarifas, com grande alarde – seguidos de publicação de exceções e confirmações – têm gerado imensa incerteza entre os agentes econômicos. As tarifas são anunciadas, excetuadas, reconfirmadas (ou não) quotidianamente, no ritmo frenético de um “reality show”, como bem apontou o Prof. Celso Lafer (entrevista à Band News em 10 de abril de 2025).
Vale ressaltar, novamente, que, desde o início do governo Trump, vários documentos alinhavam os principais pontos e objetivos da nova política – ainda que sua base teórica seja extremamente questionável. A direção política, portanto, já era conhecida. Críticas, sim, podem ser feitas à forma pela qual essa política está sendo implementada. Pode-se também questionar se os efeitos da sua implementação foram devidamente antecipados e sopesados.
A GEOECONOMIA DE TRUMP EM AÇÃO – A CRONOLOGIA DOS FATOS
Para analisar a dimensão e o impacto do pacote tarifário dos EUA, é relevante um levantamento dos avanços e recuos na utilização de um instrumento clássico do comércio – a tarifa. Objeto de várias rodadas de negociação do antigo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), a redução das tarifas de importação e a sua consolidação na OMC foi sendo atingida ao longo do tempo por um número crescente de países, até atingir o quadro atual na Rodada Uruguai e nos processos de acessão desde 1995. No caso da China, a redução das tarifas ocorreu mediante negociação de seu processo de acessão à OMC, finalizado em 2001. Com a negociação de inúmeros acordos preferenciais, as tarifas passaram a ser um instrumento de menor relevância no comércio, diante das barreiras regulatórias (barreiras não tarifárias). É importante frisar que as tarifas, como instrumento de comércio, sempre foram justificadas na OMC com o objetivo de proteger e fomentar a produção nacional, principalmente nos países em desenvolvimento. Note-se que, segundo recente estudo da OMC, cerca de 80% do comércio internacional ainda ocorrem (antes do “tarifaço” do presidente Trump) com base nas tarifas acordadas multilateralmente, aplicadas igualmente, sem discriminação, a todos os parceiros comerciais, conforme a chamada “Cláusula da Nação Mais Favorecida” (NMF) (Gonciarz & Verbeet 2025).
O pacote Trump trouxe o tema das tarifas para a frente do cenário atual. A preferência do presidente pelo uso de tarifas já tinha sido revelada no seu primeiro governo. Com base legal na Section 232 sobre segurança nacional, foram impostas tarifas de 25% sobre artigos de aço e alumínio, automóveis e autopeças.
A seguir estabelecemos uma breve cronologia sobre alterações tarifárias do atual mandato de Trump:
Esse foi o dia do anúncio da ofensiva comercial de Trump, lançada com grande alarde nos jardins da Casa Branca, com tabelas, lista de países e números. Alguns bens ficaram fora do escopo das tarifas recíprocas. São excluídos: bens já sob sanções por questões de segurança nacional; bens no escopo da Section 232; cobre; produtos farmacêuticos; semicondutores; artigos de madeira; ouro em barra; energia; e minerais específicos em um total de 1.039 produtos a 8 dígitos HS (“Sistema Harmonizado”, nomenclatura internacional para a classificação de produtos de importação e exportação, com um método numérico padronizado) avaliados em 20% das importações dos EUA.
Para Canadá e México, no âmbito do USMCA, os bens qualificados como originários mantêm seu tratamento preferencial e são isentos. Para os bens não qualificados, a tarifa terá 25% adicionais. Energia e potássio, não qualificados no acordo, terão adicional de 10%.
Para avaliar a dimensão das tarifas para os mais relevantes parceiros comerciais, podem-se estabelecer faixas de aplicação:
- 10% – tarifa-base mínima para todos os países;
- 10% – Argentina, Austrália, Brasil, Colômbia, Cingapura, Ucrânia, Reino Unido, Uruguai, Egito e Arábia Saudita;
- 11% a 19% – Israel, Noruega e Filipinas;
- 20% a 29% – União Europeia, Índia, Japão, Quênia, Malásia, Coreia do Sul e Paquistão;
- 30% a 39% – China, Indonésia, África do Sul, Suíça, Taipé Chinesa e Tailândia;
- 40% a 49% – Vietnã.
Retomando a cronologia:
Ao anunciar a pausa do dia 9 de abril, o presidente informa que essa não se aplica à China, para a qual estabelece uma tarifa de 104%, depois elevada a 125%, chegando a 145% diante da escalada da China, que anuncia retaliação com 84% e depois com 125%.
A China, ao responder às pressões dos EUA, informa que não iria se intimidar com a atitude do governo norte-americano e anuncia sua disposição de retaliar o país com diferentes instrumentos: aumento da chamada Black List, que inclui dezenas de empresas americanas sujeitas a restrições ou proibições de atuar no mercado chinês; controle de exportações de metais críticos, restrições aos direitos de propriedade intelectual de acesso ao mercado chinês; investigações antitrust por parte de autoridades chinesas; desvalorização do yuan e venda de títulos americanos que compõem suas reservas.
Em termos de arrecadação, com a implementação da tarifa básica de 10%, segundo dados publicados pela Tax Foundation, os EUA poderão potencialmente recolher, em diversos cenários, até um total de US$ 1,7 trilhão em uma década (Tax Foundation 2024).
Em síntese, em apenas poucos meses, já ficou evidente o modus operandi da política comercial do novo governo dos EUA. O tradicional e pouco sofisticado instrumento das tarifas de importação saiu dos manuais de comércio para ser usado como instrumento para extrair concessões dos parceiros internacionais, via coerção. Com avanços e recuos, os EUA prometem realizar, em poucos meses, o que a OMC não conseguiu em décadas: reduzir as barreiras tarifárias e não tarifárias dos seus parceiros comerciais. Mais ainda, de forma evidente, a política tarifária é utilizada para atingir duramente a China. Como resultado, a economia norte-americana é colocada à prova de um dos seus maiores desafios – o de se desligar da China –, ou de estabelecer um novo acordo, um novo quadro das relações bilaterais, que evoluirão positiva ou negativamente conforme o jogo de poder entre a potência hegemônica defensora e a desafiante.
OS PRIMEIROS IMPACTOS ECONÔMICOS
Os avanços e recuos das ações do presidente Trump não só geraram um clima de grande incerteza nas políticas comerciais dos parceiros internacionais, como atingiram as atividades das grandes corporações, que se viram forçadas a postergar atividades de produção e decisões de investimentos. Com o acirramento das posições, o quadro de incertezas atingiu o mercado financeiro. Previsões de desempenho da economia dos EUA e dos demais países passaram a refletir o momento de tensão. Inúmeros estudos foram realizados por instituições internacionais, financeiras e consultorias revelando um quadro alarmante na esteira do desenrolar dos fatos. Alguns exemplos são listados abaixo.
Considerando-se o quadro das tarifas recíprocas e seu impacto econômico, com relação às tarifas efetivas, o JP Morgan estimou, com base nos dados de 2024 (FT, JP Morgan, ver Valor Econômico 2025), que a tarifa média dos EUA antes das alterações era de 2,3%. Apenas com o aumento de 20% para a China, a tarifa passaria a 5%. Com o efeito para aço e alumínio sobre Canadá e México, a tarifa passaria para 7%. Com o aumento geral para autos de 25%, incluindo Canadá e México, a tarifa média se elevaria para 10%. Após o 2 de abril, a tarifa média passaria a 23,3%. Com a resposta à retaliação da China, a tarifa chegaria a 25%. No caso de exportações da China zerarem e se todos os parceiros pagarem as tarifas de 10%, a média tarifária cairia para 12%.
Para se ter uma ideia do impacto no Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA, o JP Morgan (Valor Econômico 2025) revisou os dados da economia dos EUA de um crescimento de 1,3% para uma contração do PIB de 0,3% para 2025. A taxa de desemprego iria para 5,3%. A inflação medida pelo PCE (gastos de consumo) subiria para 4,4% e ficaria acima da meta de 2%.
O impacto também foi sentido no preço do petróleo. Com o quadro de crise econômica e instabilidade nos mercados financeiros, e diante das projeções de inflação e recessão, os preços do Brent caíram de US$ 80 antes da crise para perto de US$ 60, criando incertezas sobre a viabilidade de produção de petróleo a partir do xisto nos EUA.
Estudos da OMC analisaram os impactos das tarifas recíprocas. Para a Organização, o crescimento do comércio global em volume, antes estimado em 3%, passaria à contração de 1%. A queda do PIB mundial também seria expressiva, em torno de 1% (OMC 2025). O comércio de bens entre China e EUA, que alcançou US$ 700 bilhões em 2024, poderia diminuir em 80% ou ser anulado, conforme reação das partes. O estudo estima que cerca de US$ 580 bilhões, correspondentes às exportações bilaterais entre China e EUA, procurariam mercados de terceiros países. Ainda, a OMC demonstra preocupação com os efeitos da fragmentação do comércio global ao longo de linhas geopolíticas. Estimativas da divisão do comércio mundial em dois blocos levaria à redução do PIB real global de longo prazo em 7% (OMC 2025).
Segundo a OMC, em um cenário de guerra comercial, a China teria mais a perder, uma vez que, em 2024, esse país teve um superávit de US$ 260 bilhões com os EUA, o que representa um crescimento de 6% com relação a 2023.
A diretora-geral da OMC, na cerimônia de comemoração dos 30 anos da Organização, voltou a ressaltar que, apesar do quadro das incertezas, do total mundial de US$ 24 trilhões em mercadorias, 74% do comércio internacional de bens ainda operavam sob as regras multilaterais da OMC. Tal fato atesta que, apesar do conflito, a grande maioria dos países ainda comercializam seguindo as regras da OMC.
Mercados financeiros
Com o anúncio do pacote das tarifas recíprocas anunciado em 2 de abril, o mercado financeiro nos EUA começou a reagir perante as incertezas geradas. Diante da divulgação de inúmeras estimativas dos efeitos negativos das tarifas sobre o PIB e a inflação, o mercado de ações entrou em queda. Mas foi o impacto das tarifas no mercado de títulos do governo americano (bonds) que causou maior efeito, levando o presidente a recuar e anunciar a pausa de 90 dias antes da imposição das tarifas, aguardando as negociações com os cerca de 75 países que teriam anunciado interesse em conversas com as autoridades americanas. Como lembrado acima, a tarifa básica de 10% para todos os países foi mantida, bem como a tarifa de 145% contra a China.
As razões que levaram o presidente a recuar na aplicação de seu pacote de tarifas foram examinadas por inúmeros analistas. A principal delas teria sido a reação do mercado financeiro. Horas antes do anúncio da pausa, diante das incertezas presentes, o mercado começou a demandar juros de 4% a até 5% para rolar a dívida dos EUA em T-bonds de 10 e 30 anos, de um patamar de cerca de 2%, o que afetou fortemente os preços desses títulos. Considerado como refúgio seguro para investimentos em épocas de crises econômicas, junto com as barras de ouro, a demanda do mercado foi considerada um sinal claro para o papel do dólar como moeda central no sistema. Notícias veiculadas nos jornais financeiros em 9 de abril apontavam fortes críticas ao pacote por inúmeros analistas e economistas, bem como evidências de que vários países, incluindo a China, estariam alterando suas posições em reservas com o dólar, o que teria derrubado mais ainda o preço dos títulos. Esse episódio jogou luz sobre a relação entre tarifas e finanças, algo nem sempre entendido pelos tomadores de decisão.
Problemas técnicos a serem enfrentados para as negociações
A partir da adoção do pacote tarifário e após o anúncio da pausa, diversos países contataram oficiais do governo americano para iniciarem negociações. Apontou-se, então, para a complexidade do exercício. O objetivo do pacote dos EUA seria o de abaixar os níveis de barreiras tarifárias e não tarifárias de seus parceiros. Por um lado, os valores das tarifas são dados objetivos, mas isso não se aplica a inúmeras outras barreiras regulatórias impostas contra as exportações dos EUA para outros países. São listadas: taxas sobre valor adicionado (VAT), licenças de importação, medidas técnicas, sanitárias e fitossanitárias, medidas ambientais que afetam o comércio, critérios divergentes dos americanos na imposição de standards (ex. como medir o conteúdo de carbono dos manufaturados), regulação ambiental. Juntem-se à lista questões relativas à defesa de propriedade intelectual, além da burocracia nos trâmites aduaneiros. A questão seria a de como converter as barreiras regulatórias em equivalentes tarifários.
Em um processo negociador de acesso a mercados, são realizadas estimativas de equivalentes tarifários para cada tipo de regulação e para cada tipo de produto. Esses cálculos são complexos e exigem prévia definição de metodologia. Levantou-se a dificuldade de como tal tarefa poderia ser desempenhada em curto período de tempo.
Ponto relevante da discussão é a publicação anual da USTR com versões atualizadas do relatório US Trade Policy Barriers, que permitem aos parceiros dos EUA terem conhecimento antecipado das barreiras como levantadas pelos técnicos americanos relativas a cada país. Outra fonte relevante são as discussões do Trade Policy Review da OMC, em que os EUA têm sempre papel atuante nas discussões das práticas comerciais dos membros da OMC.
A questão central é como todas as preocupações dos EUA poderão ser resolvidas em negociações bilaterais, país a país, e de forma simultânea. Negociações plurilaterais costumam durar anos, como também acontece nos acordos preferenciais.
AS PRINCIPAIS CRÍTICAS AO PACOTE TARIFÁRIO
O memorandum America First Trade Policy, divulgado já no primeiro dia do segundo mandato do presidente Trump, deixou evidente a predileção do presidente por usar tarifas como armas de coerção.
Já nos primeiros dias de implementação do pacote de medidas, as reações de diversos setores da economia começaram a ser ouvidas. Eminentes professores de economia, ex-secretários de governos democratas e analistas econômicos foram enfáticos nas críticas ao Pacote Trump. Apontaram para os impactos inflacionários e o possível quadro recessivo para a economia dos EUA e seus efeitos mundiais. Alguns pontos merecem atenção:
DA GEOECONOMIA À GEOPOLÍTICA: CENÁRIOS POSSÍVEIS
Em vista das incertezas geradas nesses primeiros meses da administração Trump, da amplitude das repercussões das medidas sobre a economia mundial e sobre as cadeias de valor, há muito interesse por parte de agentes econômicos e tomadores de decisão por cenários possíveis para o futuro.
A construção de cenários envolve necessariamente pressupostos teóricos, que orientem a probabilidade da direção dos fatos e comportamentos potenciais. Em se tratando de comércio internacional, dois eixos podem ajudar a estruturar o plano da construção de cenários: o nível de tensões globais (mostrado em um eixo vertical) e a dinâmica da cooperação internacional (eixo horizontal). O cruzamento desses dois eixos resulta em quatro cenários: rivalidade protecionista, colaboração estratégica, coexistência competitiva e domínio unilateral (ver Figura 1).
Figura 1. Cenários baseados em do Prado et al. (2025).
Note-se que tais cenários não são mutuamente excludentes e podem se sobrepor de várias maneiras. Eles são evidentemente teóricos, hipotéticos e podem parecer exagerados na descrição dos futuros. Cenários não são previsões, mas sim uma maneira esquemática de imaginar futuros possíveis. A trajetória real do comércio internacional provavelmente envolverá elementos de cada um desses quatro cenários. A trajetória real será moldada por dinâmicas geopolíticas e geoeconômicas complexas, como as que vivemos neste momento, com as tarifas adotadas pelo governo dos EUA, a instabilidade resultante de ações unilaterais, pelas respostas e comportamentos dos demais parceiros comerciais e também por fatores aleatórios, como o que vivemos com a pandemia, desastres naturais ou conflitos.
Cenário 1: Rivalidade protecionista
Alta tensão global e baixa cooperação internacional
Este é o pior cenário, caracterizado por tarifas e barreiras comerciais crescentes, retaliações, políticas industriais nacionalistas voltadas para a autossuficiência e investimentos transfronteiriços limitados. A rivalidade protecionista se espalha para além dos EUA e da China. As tensões crescentes e o desrespeito generalizado dos acordos internacionais criam um ambiente de potencial conflito armado.
Impulsionados pela necessidade política de reagir às tarifas dos EUA e por preocupações com a concorrência desleal e a segurança nacional, diversos países tentam minimizar os efeitos das barreiras dos demais, levantando suas próprias barreiras e protegendo seus investidores e mercados. Os EUA aumentam exponencialmente as tensões comerciais, corroem o sistema multilateral de comércio e geram respostas retaliatórias, que resultam em maior protecionismo em todo o mundo.
A China responde com crescentes medidas de retaliação, barreiras comerciais e de investimentos e restrições à exportação de matérias-primas críticas; e intervém massivamente no mercado de títulos da dívida norte-americana. Isso aumenta ainda mais as tensões comerciais e econômicas, leva a uma fragmentação mais profunda do sistema de comércio global e gera uma recessão global. As cadeias globais de suprimentos sofrem importantes interrupções e desestruturação.
Os EUA insistem em controlar o Canal do Panamá e em ocupar a Groenlândia. Uma crise provocada pela China no Estreito de Taiwan gera tensões geopolíticas crescentes. Matérias-primas críticas, muitas das quais são extraídas e refinadas pela China, tornam-se armas comerciais à medida que as restrições comerciais e os gargalos de fornecimento limitam o acesso a insumos essenciais para a produção de bens de alta tecnologia nos EUA. O comércio internacional se desestrutura, a economia global entra em recessão.
Cenário 2: Colaboração estratégica
Baixas tensões globais e alta cooperação internacional
Em contraste com o Cenário 1, esta é uma hipótese de desenvolvimentos positivos, na qual os governos priorizam acordos e normas do comércio global e se engajam em diálogos estruturados, para enfrentar desafios compartilhados de produção eficiente e tentar solucionar desequilíbrios racionalmente. Constrói-se uma ordem compartilhada para assegurar a fluidez dos fluxos de comércio, as tensões geopolíticas são baixas.
Nesse cenário, a cooperação internacional é alta, com esforços conjuntos para construir e manter cadeias de suprimentos resilientes e seguras. A China e os EUA estabelecem um quadro de consultas permanentes e de negociação para reduzir as tensões e resolver problemas comerciais. EUA, China e outros parceiros comerciais promovem joint ventures de suas empresas e projetos comuns, encorajam investimento com transferência de tecnologia acordada e a criação de emprego, garantem o fornecimento de minerais críticos e compartilham inovação.
As cadeias de valor são mantidas e reforçadas, gerando crescente eficiência na produção. Os demais países se beneficiam do clima de distensão e de cooperação.
Cenário 3: Coexistência competitiva
Altas tensões globais e alta cooperação internacional
Ao contrário dos dois cenários anteriores – que são em tudo negativos ou positivos –, este cenário pinta um quadro misto, em que a competição e a cooperação coexistem. Enquanto alguns países podem se envolver em medidas protecionistas, outros priorizam esforços colaborativos.
Muitos governos reconhecem a necessidade de manter as cadeias de valor e, ao mesmo tempo, abordar as preocupações com a concorrência justa e a segurança nacional. Muitos países implementam medidas de defesa comercial e salvaguardas sobre produtos chineses ou medidas de “área cinzenta” (restrições voluntárias à exportação) com os EUA e a China, ao mesmo tempo que se envolvem em parcerias estratégicas e diálogos. Este é um cenário de equilibrismo, que engloba uma série de ações, seguindo uma estratégia bem elaborada.
Esse cenário resulta em um alto grau de regionalização, com os países formando blocos comerciais e priorizando metas econômicas internas, enquanto continuam a participar do comércio global.
Cenário 4: Domínio Unilateral
Baixas tensões globais e baixa cooperação internacional
Neste cenário, uma região ou país domina a produção de bens, devido à liderança tecnológica, tamanho do mercado interno e controle sobre recursos críticos. A China, com seu domínio na produção de alta tecnologia e software, aproveita suas vantagens competitivas para capturar uma grande fatia do mercado global e assume a liderança na economia global.
Os avanços na tecnologia chinesa e seu vasto mercado interno impulsionam a produção de empresas chinesas, que se espalham pelo mundo. O dólar norte-americano deixa de ser a principal moeda de pagamentos e reserva internacional. Com a decadência e recessão dos EUA, a China se torna o centro da economia mundial.
A ordem do comércio internacional passa a ser dominada pela China e suas empresas. Os produtos chineses de alta tecnologia ganham terreno nos mercados globais. As empresas norte-americanas enfrentam uma crise estrutural, com a recessão nos EUA e a instabilidade gerada por decisões equivocadas de seus governos.
Outras regiões passam a depender da tecnologia e das cadeias de suprimentos chinesas. Isso resulta em uma indústria e em estruturas de produção menos diversificadas, com concorrência limitada para reduzir custos e acelerar o avanço tecnológico em outras regiões.
Cenário possível
As ações recentes do governo dos EUA descritas na primeira parte deste policy paper geraram um alto grau de instabilidade e incerteza no comércio internacional. Além das repercussões sobre os negócios atuais, essa instabilidade – marca registrada de Donald Trump – tenderá a esfriar o clima de investimentos diretos produtivos. É pouco provável que empresas decidam, em poucos meses, transferir em massa suas operações manufatureiras para o território americano. O mais provável é que a maioria dos agentes econômicos decida esperar por uma maior definição (se não estabilização) do quadro tarifário e de negócios nos EUA.
O desrespeito aos acordos preferenciais bilaterais e regionais, às concessões tarifárias a países em desenvolvimentos e a violação das regras fundamentais da OMC (consolidação de tarifas, cláusula da Nação Mais Favorecida e tratamento nacional), para além das idas e vindas na aplicação discricionária de tarifas, geraram desconfiança e descrédito nos agentes econômicos com relação aos EUA. Os tomadores de decisão nos principais parceiros comerciais dos EUA (China, União Europeia e Japão) adotam a partir de agora uma estratégia de minimizar a exposição ao risco que o governo Trump representa (derisking).
A perda de confiança e credibilidade dos EUA já ficou patente no comportamento do mercado de capitais e de títulos da dívida americana. Apesar de seu riquíssimo mercado consumidor, os EUA passaram a ser um parceiro pouco confiável. Isso se deve sobretudo ao comportamento errático de seu líder e de seus assessores e à pouca consistência das medidas adotadas até agora, ainda que, provavelmente em uma tentativa de racionalização ex-post, alguns comentaristas possam enxergar método e estratégia de reordenamento da economia americana e mundial por trás de tais medidas, com base nos textos e explicações de Stephen Miran, Scott Bessent e Howard Lutnick. A maioria dos observadores, no entanto, vê bases teóricas e empíricas frágeis e questionáveis nos textos publicados e nas explicações dadas até o momento.
O sistema de pesos e contrapesos da divisão dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário praticamente deixou de funcionar nos EUA. Trump é hoje um presidente com poderes sem precedentes na história dos EUA, o que bem demonstra a explosão do número e conteúdo de ordens executivas publicadas desde janeiro de 2025. O único contrapeso que funcionou até o momento foi o poder dos mercados, sobretudo o de títulos da dívida, que apontavam para um risco de crise financeira no dia anterior à pausa de 90 dias na aplicação de tarifas. Outros potenciais (mas nada garantidos) contrapesos serão o comportamento dos consumidores/eleitores, caso haja um aumento expressivo da inflação e redução do nível de atividade econômica, e possivelmente das doações à campanha dos candidatos republicanos nas eleições intercalares (Midterms), a partir do final de 2025. Será interessante, ademais, acompanhar as opiniões e comportamento das comunidades de investidores em Wall Street e dos chamados Tech-bros, patrões de grandes empresas de tecnologia, que têm grande influência sobre Donald Trump.
Observando-se os primeiros 100 dias da segunda presidência Trump, pode-se identificar algumas tendências, que deverão ser confirmadas (ou não) nos próximos meses. A primeira é que a China se comportou de maneira firme e serena, demonstrando estar preparada para o tumulto atual. Ao comportamento errático do The Art of the Deal de Donald Trump, a China responde com a paciência milenar de The Art of War de Sun Tzu. De modo informal, pode-se dizer que o placar dos primeiros 100 dias é claramente China 1 x 0 EUA. Até que ponto o comportamento do mercado de títulos do Tesouro foi influenciado pela China é algo ainda em debate, mas há indicações de que tal influência não foi desprezível.
A segunda tendência – relacionada com a primeira – é que, a partir de agora, a relação entre o mercado de capitais e da dívida, ou seja, entre o mundo das finanças e as medidas de política comercial (tarifas), está totalmente entrelaçada. Essa relação direta entre os dois mundos – finanças e comércio – levanta questões interessantes, sobretudo porque as governanças internacionais de uma e de outra são distintas em seu nível de regulação, no seu locus e nas suas comunidades epistêmicas. Essa relação já havia ficado clara no passado, em especial na crise financeira de 2008, mas agora adquire contornos ainda mais nítidos, dados a influência mútua e o jogo de poder no pináculo do governo dos EUA.
A terceira tendência é a diminuição da centralidade dos EUA na economia mundial. O aumento do “risco EUA”, com as incertezas e instabilidade geradas pelo governo Trump, acopladas com a ascensão econômica e o desenvolvimento tecnológico da China, que não teme enfrentar a ação tarifária do presidente Trump, aponta para um papel crescente desse país no cenário internacional e para uma diminuição do papel dos EUA. O ataque dos EUA à ordem de Bretton Woods – que eles próprios conceberam e implementaram e que os levou a se tornarem o país mais rico do mundo – faz lembrar a obra March of Folly: from Troy to Vietnam de Barbara Tuchman (1984), na qual a autora descreve alguns dos grandes paradoxos da história, quando governos adotam políticas e medidas contrárias aos seus próprios interesses. O predomínio do dólar norte-americano como moeda de reserva e de pagamentos internacionais, antes praticamente incontestado, passa a ser questionado, sobretudo na China, no Sudeste Asiático e nos países do Golfo Pérsico, além de fazer parte das discussões do BRICS. Os cortes orçamentários a grandes universidades e instituições de pesquisa americanas e a expulsão de estudantes estrangeiros reforçam essa impressão de paradoxo e de comportamento autodestrutivo.
Como reagirão os demais países a esse novo mundo, a essa que parece já não ser uma era de mudanças, mas uma mudança de eras?
Por enquanto, as demais grandes economias – União Europeia, Japão, Índia, Reino Unido e Brasil – adotaram uma atitude moderada, contida, diante da instabilidade provocada pelos EUA. Essa atitude, evidentemente, poderá mudar, caso os EUA voltem a introduzir tarifas proibitivas ou eventualmente forçarem a mão desses países a fazer escolha entre uma aliança com os EUA ou a China. Começa a se delinear – ainda que muito tenuamente – uma tentativa de formação de acordos entre blocos, como, por exemplo, a União Europeia e o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CPTPP). A grande questão será se os EUA conseguirão negociar acordos abrangentes e construtivos (e sobretudo que sejam respeitados), a partir de uma atitude coercitiva, de ameaça de imposição de tarifas, e conformar uma nova ordem internacional, já não mais baseada em regras acordadas multilateralmente e de acordos preferenciais, mas tão simplesmente na vontade (ou necessidade) de continuar a exportar para o mercado americano.
Organização Mundial do Comércio
As medidas tarifárias adotadas por Donald Trump desde janeiro de 2025 configuram um ataque frontal às regras fundamentais da OMC. As dúvidas e questionamentos dos EUA em relação à OMC, contudo, não são exatamente uma novidade. Desde 2008, quando o diretor-geral Pascal Lamy tentou propor uma estrutura de acordo para concluir a Rodada de Doha, eram evidentes as dificuldades dos EUA com a Organização. A partir da contestação bem-sucedida pela China, junto ao Órgão de Apelação, de medidas de defesa comercial adotadas pelos EUA nos anos 2000 e 2010, os representantes norte-americanos passaram a ser severos críticos da atuação desse Órgão, acusando-o – diga-se, não sem razão – de ativismo jurídico e de interpretações incompatíveis com o que fora negociado na Rodada Uruguai. Os EUA também passam a criticar de maneira contundente, na OMC, o modelo de capitalismo de Estado da China e os subsídios desse país, que causam profundas distorções no comércio internacional. Os EUA consideram que o modelo produtivo chinês é incompatível com princípios basilares de economia de mercado defendidos pela OMC. Os EUA passaram a bloquear as nomeações dos membros do Órgão de Apelação, que deixou de operar em 2019. Observe-se ainda que todas as propostas de se tentar prosseguir negociações em formato plurilateral e em temas relevantes, como comércio eletrônico, foram obstruídas pela Índia e pela África do Sul, o que debilitou ainda mais a função negociadora da OMC.
O fato de os EUA informarem recentemente que deixariam de contribuir para o orçamento da OMC e a notícia da apresentação de projeto de lei na Câmara de Representantes para a saída dos EUA como membro da organização levantam a pergunta sobre o futuro dos EUA na Organização e da OMC em si mesma.
Quais alternativas se abrem, a partir dessa atitude dos EUA? A primeira seria o abandono da Organização por parte de outros membros, diante do desengajamento dos EUA. Essa hipótese parece pouco provável, sobretudo pelo continuado apoio da União Europeia, Japão, Austrália, Brasil e outros à OMC e à sua função de transparência e de plataforma de diálogo sobre comércio internacional. Segundo cálculo do Secretariado da OMC de janeiro de 2025, aproximadamente 80% do comércio mundial de mercadorias se fazem com base na regra da Cláusula da Nação Mais Favorecida (Gonciarz & Verbeet 2025). Ainda que as tarifas adotadas pelos EUA venham a ter uma influência negativa sobre essa percentagem – sobretudo no comércio bilateral entre China e EUA, que deve configurar praticamente um “decoupling” das duas economias, segundo a OMC (Stewart 2025) –, o comércio entre os demais países deve continuar a se fazer primordialmente com base nas tarifas multilaterais. Ressalte-se ainda que os mais de 300 acordos preferenciais existentes têm por base as tarifas e compromissos assumidos por seus participantes na OMC, a partir dos quais se estabelecem as tarifas e regras preferenciais – ou seja, a base de todos os acordos regionais e preferenciais continua a ser os acordos da OMC.
A segunda alternativa seria a configuração de uma OMC menos 1, seja pela saída formal dos EUA, seja pelo total desengajamento desse país. Essa alternativa parece realista, pois é pouco provável que os EUA liderem uma reforma da OMC “por dentro”. O mais provável é que sua atuação seja reduzida ao mínimo – ou que de fato solicitem sua saída formal. Nessa configuração, a questão será saber qual o papel que a China assumiria na Organização e se seria capaz de liderar consenso sobre acordos como de Facilitação de Investimentos e outros temas. Seria também interessante imaginar um mecanismo de solução de controvérsias renovado.
Ponto central, neste momento, é o papel que virá a ser desempenhado pela China, pela União Europeia e pelas demais potências médias como Japão, Coreia, Reino Unido, Índia, Brasil e Indonésia na OMC e na configuração do comércio mundial do futuro. Uma coordenação entre esses países e as pequenas economias do mundo poderia dar novo ímpeto à Organização.
CONCLUSÃO
As medidas tarifárias adotadas pelo governo dos EUA desde a posse do presidente Donald Trump em janeiro de 2025 representam uma ruptura do sistema multilateral de comércio baseado em regras, vigente desde a criação do GATT em 1947 e o estabelecimento da OMC em 1995. Os EUA, cuja hegemonia é agora contestada pela China, desistiram de pagar o preço da liderança de um sistema que lhes possibilitou ser o país mais rico e militarmente poderoso do planeta. A Pax Americana, que vigorou desde o final da 2ª Guerra Mundial, pressupunha uma vontade política dos EUA de exercer liderança externa. Essa vontade já não existe. Neste momento, fica claro o primado da política interna, baseada no bordão Make America Great Again (o “again” pressupõe e admite que a América de hoje já não é “great”).
Essa falta de vontade política para exercer liderança mundial, ao que tudo indica, se deve à ascensão da China como potência hegemônica desafiante. A fulgurante ascensão econômica da China, ao contrário do que muitos acreditavam em 2001, não levou a uma mudança de regime político naquele país. Ao contrário, reforçou e consolidou o Partido Comunista chinês. Os EUA nunca tiveram um rival como a China, cuja economia hoje representa quase 70% do PIB dos EUA e um desenvolvimento tecnológico invejável. A China passou a exercer uma liderança não só econômica e tecnológica, mas também política na Ásia, com uma aliança estratégica com a Rússia. A China é hoje o maior parceiro comercial de praticamente toda a África, América Latina e Ásia, com poucas exceções.
Abre-se, portanto, um novo ciclo estratégico, no qual os EUA aparentemente abrem mão da ordem liberal multilateral baseada em regras e criam instabilidade, ao preço de sua própria credibilidade como parceiro confiável. As ações do governo Trump implicarão, a partir de agora, que os EUA aceitem uma divisão do mundo em grandes espaços econômicos regionais e em uma nova configuração de polaridades. O governo Trump precipitou essa mudança de eras, em que a centralidade dos EUA na economia mundial passa a ser desafiada, abrindo espaço para outras potências contestarem tal posição.
Estão na ordem do dia novas análises e discussões: o mundo do futuro próximo será liderado por três, por duas ou por uma potência hegemônica? Nas gradações de tensões globais e cooperação internacional, qual cenário prevalecerá?
Referências Bibliográficas
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Recebido: 21 de abril de 2025
Aceito para publicação: 27 de abril de 2025